Antes de começar o filme, eu estava pensando “eu tenho estrutura para assistí-lo?”. Fiquei com essa pergunta na mente, porque já ouvi muitos relatos tanto sobre a profundidade do livro, quanto do filme. E sabia que poderia me jogar em um buraco sem fundo assistindo O Ódio que você semeia.

Essa não é uma história fácil de ser digerida. Sobretudo, por relatar situações tão comuns na vida de jovens negros.

Para além da violência explícita, que é o tema central da trama, o assassinato de um jovem negro por um policial branco. Existem outras nuances que são igualmente violentas. Que nos matam dia após dia, só que lentamente.

Podemos perceber isso nas relações estabelecidas e na dupla personalidade que a jovem Starr precisa adotar para ser aceita em um lugar que não lhe é comum. Em O Ódio que você semeia, também é escancarado as relações de poder, as falhas na estrutura da sociedade e a manutenção constante de privilégios, mas vamos por partes…

Qual é o tema do filme O ódio que você semeia?

Inspirado no livro de estreia de Angie Thomas, O ódio que você semeia, narra o dilema de uma jovem negra, que precisa escolher entre “ser uma boa amiga” e lutar por justiça, após presenciar o brutal assassinato de seu melhor amigo de infância, Khalil, enquanto luta pela própria vida, em uma comunidade perigosa e repleta de armadilhas.

A jovem Starr (Amanda Steinberg) faz parte de uma família negra que mora em Garden Heights, um lugar que lhe é extremamente familiar, onde ela sabe o nome de todos os vizinhos, onde fica cada comércio, mas que também é totalmente desconhecido, na mesma medida, dominado pelo tráfico de drogas e comandado pelo terrível King.

Por ter sido educada por um pai que conhece seus direitos e a brutalidade do mundo do crime, Starr tem plena consciência do quanto é podada pela sociedade em que está inserida.

Mesmo estudando em um colégio particular, um dos melhores da cidade, ela sabe que não pode ser ela mesma. Que ela precisa falar sempre com um tom mais baixo. Estar sempre sorridente, não pode ser combativa. E muito menos deixar transparecer aos seus amigos brancos que ela é “do gueto”.

Não porque ela não quer, ou porque ela tem vergonha. Mas porque ela sabe em que lugar seria colocada se assumisse a sua negritude e gritasse aos quatro cantos o quanto tem orgulho de ser quem é.

Por esta razão, Starr é uma pessoa quando está na escola e outra completamente diferente quando está em Garden Heights, com sua família.

Só que essa “consciência” tem um peso. Abri mão de si mesma, às vezes pode custar muito caro. Assim como lutar contra o mundo pode ser extremamente doloroso. E agora, Starr precisa tomar uma decisão:

Ela vai continuar sendo omissa a todo o sofrimento que vem passando, ainda que isso venha com o benefício de estar “segura”. Ou ela corajosamente vai lutar contra o sistema clamando por uma justiça que talvez nunca venha, colocando, inclusive, sua vida e a vida de sua família em risco?

“Razões para viver, dão razões para morrer”

– O ódio que você semeia.

O Ódio que você semeia, é uma obra delicada que ao citar 2Pac em diversos momentos do filme, transborda o tema racismo. É uma história de coragem, de união, de autovalorização, de comunidade e sobretudo, sobre não se calar perante as injustiças da vida, ainda que isso lhe cobre um preço alto demais.

Fotografia – O ódio que você semeia

Que esse filme é uma obra de arte, nós já sabemos, mas gostaria de chamar a atenção para o cuidado da direção de fotografia (que ficou por conta do Diretor Mihai Malaimare Jr.) que trouxe cenas impecáveis em cada take.

Um detalhe importante que aprendi sobre fotografia de filmes quando assisti Moon Light é sobre o quanto as cores falam… Se repararmos bem no plano de fundo das cenas, podemos rapidamente identificar o que a personagem central está sentindo e até mesmo quais sequências teremos.

Por exemplo, nas fotos acima podemos reparar dois detalhes importantes:

A ambientação da escolha de Starr era toda em azul. Os armários, o uniforme, a luz. E a cor azul, no cinema nos remete à uma tristeza profunda. Para você entender o cuidado da produção do filme. Por que de fato, na escola, Starr não se sentia segura, acolhida. Tinha que fingir ser quem não era o tempo todo.

Em outra cena, o encontro dos amigos Starr e Khalil é banhado por uma luz vermelha, que nos remete ao perigo. É como um presságio de que algo ruim está prestes a acontecer.

Eu chorei do início ao fim com este filme, porque ele toca em lugares muito sensíveis, como:

1. Quanto vale o seu silêncio?

Durante toda a história, uma questão rondava a minha mente: quanto vale o seu silêncio?

Quando presenciamos uma cena de racismo, um assassinato brutal que tem cor e endereço marcados, a manipulação da mídia para inocentar quem apertou o gatilho. Por que isso não nos deixa indignados?

Porque não nos atinge pessoalmente? Por que só sofremos quando somos diretamente atingidos (e às vezes nem isso)?. Enquanto outros como nós estão sendo massacrados?

Por que não conseguimos nos organizar enquanto comunidade? Para apoiar uns aos outros?

2. Você está disposta a ser ignorada?

Se a sensação de ficar em silêncio pode ser esmagadora, experimente ser ignorada.

Uma das cenas mais fortes do filme, é quando Starr finalmente cria a coragem necessária para enfrentar o sistema e chega a conclusão que não importa o quanto ela grite, eles não querem ouvir.

3. Não basta não ser racista, é preciso ser anti-racista

Outro momento do filme O Ódio que você semeia que nos deixa sem fôlego, é quando a Starr “ameaça” uma amiga branca com uma escova de cabelo. Mesmo objeto que foi confundido com uma arma quando seu amigo foi assassinado.

Essa amiga em questão, passou a não tolerar mais a presença da Starr, quando ela começou a se mostrar indignada com tudo o que estava acontecendo.

Chegando ao ponto de se solidarizar com a família do policial que matou o jovem e acusar o Khalil de ser traficante, justificando assim sua morte.

E a pergunta que fica é essa: quantos amigos brancos nós temos que dizem “se identificar” com a causa, quando na verdade só estão tentando virar o holofote para si mesmos.

É como aquela velha frase “é legal ser preto quando não se é preto”

4. O que estamos ensinando às nossas crianças?

Esse questionamento tem dois pontos, que seguem rumos diferentes.

Na primeira cena do filme quando Mav ensina o Programa de 10 Pontos dos Panteras Negras eu senti um arrepio na espinha!

Porque não estamos ensinando às nossas crianças quais são os direitos delas? O que nós queremos, enquanto comunidade? O que nós merecemos?

Essa cena me pegou totalmente de surpresa, principalmente por fazer um paralelo com a forma que falamos aos nossos filhos aqui no Brasil para tomarem cuidado ao saírem de casa.

Enquanto Mav, ensinava seus filhos a colocar as mãos onde o policial possa ver e a conhecer seus direitos, as milhões de mães brasileiras recomendam que seus filhos nunca saiam de casa sem seu documento de identificação.

Mav ensinando o programa de 10 pontos dos panteras negras em o odio que voce semeia

Duas formas de ensinar a mesma coisa: quando for parado por um policial, em especial, por um policial branco, à noite, fique quieto, mantenha a calma, esteja com a sua identificação.

Em outro momento, temos a cena final, que é de dilacerar o coração.

Quando Sekani, cego pela fúria, pelo medo, põe as mãos em uma arma, para tentar defender seu pai.

Essa situação poderia ter dado errado de tantas formas. E eu confesso que prendi a respiração nesse momento.

Até ser pega desprevenida pela mensagem “O ódio que você semeia, ferra com todo mundo”. Principalmente, com as nossas crianças.

Forte demais! Chorei do início ao fim com a obra de arte que é esse filme!

Criadora de conteúdo, mãe, carioca da gema. Viajante e realizadora de sonhos.

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